quinta-feira, 16 de junho de 2016

Marca Livro reformulado e em novo endereço!



O Marca Livro foi reformulado e voltou de cara nova!

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terça-feira, 3 de maio de 2011

Crime doloso

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Ele não se lembrava de ter passado por um verão tão quente e perturbado. Trinta e seis graus durante o dia e muita chuva, água e desespero durante o final da jornada. Não havia mais vagas pelas ruas, a inflação elevou o valor dos alimentos a preços exorbitantes e as manifestações ocorriam por todo o planeta. O que nos restava fazer? Nós, meros mortais? Seguir em frente. Trabalhar, estudar, pagar as malditas contas e torcer por um pouco de felicidade durante o período de folga.

Aquela época de sua vida podia ser chamada de “Aguardando pelo Final de Semana”. As segundas-feiras começavam com um único pensamento: quantos dias faltam para sexta? O problema era que a cada semana, os dias tornavam-se cada vez mais longos e cheios de obrigações. Talvez isso estivesse levando-o há uma vida dividida. Durante os dias de estudo e trabalho, concentrava-se em ser um rapaz centrado, integro e responsável. Nos tempos livres, sua principal ocupação era enlouquecer e se divertir. Não havia muitas regras. Álcool, drogas e mulheres fúteis e desinteressantes que nunca receberam um telefonema sequer após a noite anterior. A verdadeira felicidade é igual ao amor, está em todo lugar, mas a gente nunca encontra.

Uma bela noite, quando voltava de mais uma jornada de trabalho, saiu apressado do escritório e apertou o botão do terceiro andar. Saiu do elevador apenas para verificar se os manifestantes ainda estavam por ali. Meia dúzia de estudantes maltrapilhos haviam se acorrentado junto a catraca da entrada principal para mais um protesto sem resultados. Quem não chora não mama! Mas aquela era mais uma luta perdida. A polícia logo chegaria e dispersaria aqueles garotos na força. Os primeiros a apanhar seriam os três mil desocupados ao lado de fora. Aqueles da catraca certamente teriam um destino pior. Talvez presos. Talvez espancados.

Ele foi obrigado a sair pela garagem do prédio. Ainda atravessava a ponte em direção ao terminal de ônibus quando percebeu toda a gritaria. Enquanto subia o escadarão, podia ouvir ao longe os tiros de bala de borracha e as bombas de gás lacrimogêneo sendo atiradas contra a multidão.  Não era nenhuma novidade.  O protesto nunca acabaria com pedidos de “licença” e “por favores”. Ele continuou andando enquanto pensava qual era o caminho mais rápido até o lar. Não iria se rebelar. Estava ocupado demais preocupado com seus próprios problemas para aderir a uma batalha perdida. E caso tivesse culhões para fazê-lo, certamente seria demitido no dia seguinte. Essa não era, nem de perto, a solução. Covarde? Egoísta? Chamem-no do que quiser, mas ele nunca seria um “revolucionário”.

No ponto, como sempre, o transporte casual estava cheio, cheio até demais. Ficou parado por cinco minutos em frente a porta do primeiro ônibus que havia chagado e desistiu. Seria mais fácil voltar a pé. Teria sete quilômetros para refletir. O trajeto continuava sendo o mesmo de sempre, mas pelo menos seria percorrido de forma diferente.

Depois de alguns quarteirões, havia constatado que precisava cortar os cabelos, arrumar uma namorada, tirar férias e suspender por alguns momentos a boêmia e os exageros. Seria conveniente se ausentar do mundo por uma quinzena de dias. Viajar para algum lugar qualquer e esquecer todos os problemas e preocupações. Mas sabe qual a grande ironia? Nada disso seria feito e ele, mais do que ninguém, percebia isso com muita clareza. Tudo bem, ele precisava de algum modo dispersar os pensamentos e continuar a caminhada.

Depois de mais algumas dezenas de minutos, chegava a parte mais estranha do percurso. Razoavelmente próximo de sua casa, havia um cemitério que torneava uma grande avenida. Algumas partes desse trajeto eram, às vezes, um pouco perigosas, escuras e desertas. Alguns mendigos, flanelinhas e viciados deixavam o ambiente literalmente mais inóspito. Não que ele se preocupasse, afinal nunca havia sido assaltado nem tinha sofrido problemas severos vivendo em uma das metrópoles mais perigosas do país. Talvez essa falsa sensação de segurança fosse seu grande erro. Erro que lhe custaria caro.

Enquanto caminhava calmamente, percebeu a movimentação estranha de dois sujeitos que vinham pela direção oposta. Eles conversavam desconfiados e pareciam planejar alguma coisa. Seus instintos perceberam que algo estava prestes a dar errado. Aquele velho frio na espinha, o coração acelerado e o medo atento que desperta e aguça todos os seus sentidos. Não era necessário ser nenhum vidente para se dar conta que problemas sérios estavam a caminho.

O movimento dos carros era intenso, não havia brechas para mudar o curso, atravessar ou ir para o outro lado da rua. Os dois inimigos estavam cada vez mais próximos. Descalços, sujos e com feições nada animadoras. Os olhos injetados, as roupas em frangalhos. Andavam, quase corriam. Já haviam escolhido o alvo. Não havia como escapar. Seus olhos rápidos localizaram uma barra de ferro apoiada no poste a sua frente. Seria sua arma, sua defesa.

Estavam apenas há alguns metros do confronto definitivo, quando um dos dois algozes gritou e seu companheiro correu em direção a vítima. Percebendo o perigo, agarrou a barra de fero com seu braço direito e deferiu o golpe com toda sua força. A haste atingiu o meio da face do indigente. Exatamente embaixo do nariz. Ele não esperava tal reação. Não conseguiu desviar. Mal tentou evitar o golpe. A força do impacto foi tão grande que estremeceu todo seu braço e metade do tronco. O sangue jorrou e o inimigo desabou. Ficou estirado no chão, gemendo e, ao que parecia, tendo algumas convulsões. A barra havia entortado pela metade.

Seu companheiro assistiu toda a cena tranquilamente. Olhou diretamente nos seus olhos e então observou seu amigo no chão. Abriu um grande sorriso e começou a gargalhar. Enquanto ria, retirou uma arma da cintura e apontou para o trabalhador que apenas tentava voltar para casa. Não disse nada e divertiu-se mais um pouco. Sem ter como reagir, ele deixou a barra de ferro cair e se rendeu. O som do ferro batendo no concreto foi o único barulho que se podia ouvir. Ecoou. O semáforo tinha fechado e a rua ficou deserta por alguns instantes. A tensão era imensa. O assaltante não esboçou emoção, apenas tirou do bolso esquerdo um pequenino saco contendo um pó branco em seu interior. Provavelmente era cocaína. Colocou um pouco sobre as costas da mão que estava desocupada e cheirou com muita satisfação. Deu algumas fungadas e sorriu novamente. Guardou o restante da droga no bolso e levantou a arma. Mirou com atenção. Ninguém dizia nada. A luz verde do farol ascendeu. Os carros aceleraram, as buzinas tocaram, o caos urbano recomeçou e ele puxou o gatilho.

BAM!
                       BAM!
                                                                                                                BAM!
                                           BAM!
                                                                                      BAM!
                                                                                                                                                            BAM!
 BAM!

Nosso protagonista caiu e não mais se mexeu. Sem movimentos, sem palavras, sem discursos perdidos. O sangue escorria e chegava até a sarjeta. O assassino analisou atentamente a situação, desdenhou o corpo e perdeu alguns segundos observando a iluminação que era refletida nas poças de sangue. Guardou a arma e foi em direção ao seu companheiro. Ajudou-o a se levantar e novamente começou a rir. A situação debilitada em que se encontrava parecia alegrar, e muito, o amigo. Aos poucos começaram a se afastar, seguindo o caminho que vinham fazendo antes do sangrento encontro.

Não havia dúvidas, a intenção realmente era o homicídio. Sete tiros foram disparados. Todos contra o peito.  Não roubaram a vítima. Não levaram absolutamente nenhum pertence nem ao menos encostaram suas mãos no falecido corpo. Dobraram a esquina e desapareceram no horizonte.


sexta-feira, 25 de março de 2011

Magic!


Era uma sensação diferente tentar descobrir porque ela chamava tanto a minha atenção. Tinha a chance de encontrá-la ao menos uma ou duas vezes por semana durante o caminho de volta até o lar. Pegávamos o mesmo ônibus e sua presença deixava a viagem, no mínimo, muito mais interessante.

Não fazia idéia sobre qual seria o seu nome, onde trabalhava nem qual era o seu emprego. Entretinha-me tentando imaginar o que ela gostava de fazer, quais eram seus pratos favoritos ou que tipo de música ela ouvia durante o trajeto. Era engraçado fazer tais indagações, pois tinha certeza que tudo seria muito diferente quando realmente a conhecesse. As únicas coisas que podia afirmar com exatidão eram que trabalhávamos relativamente perto, que ela morava próximo a minha casa (já que sempre descia um ponto antes do meu) e que era incrivelmente linda. Mas quanto a esse último fato não era preciso que ninguém me recordasse disso. O que eu podia dizer? Ela era mágica!

Inúmeras vezes chegava ao ponto e ela já estava a espera de nosso “querido” transporte público. Sempre a observava ao longe. Não precisava muito para que chamasse minha atenção. Apenas um gesto ou um pequeno olhar eram mais que suficientes para que eu ficasse completamente hipnotizado. E isso, posso dizer com sinceridade, não era muito comum acontecer. Já havia apreciado a beleza das mais diversas mulheres – como todo homem costuma fazer –, mas pouquíssimas despertavam meu interesse de tal forma. Isso fazia-me pensar que talvez ela fosse única, e por algum um motivo que eu ainda não conhecia.

Já havia tentado uma aproximação e lhe entregado um bilhete uma vez quando voltávamos “juntos”. Nunca houve uma resposta. A partir de então passamos a jogar, nos evitando e fazendo o possível para que a troca de olhares nunca ocorresse. Ela, provavelmente, sabia o quanto era bela e não perderia tempo com qualquer um apenas por um pequeno bilhete. Eu só queria mostrar que não me importava, fingindo demonstrar indiferença sempre que nos encontrássemos. Era tudo uma grande mentira, pelo menos da minha parte. Sempre que podia, parava minha leitura para admirá-la, fazendo o possível para que ela não percebesse. Claro que nem sempre conseguia ser tão discreto assim. É engraçado, pois a maioria das pessoas não entende que momentos simples como este podem ser inesquecíveis.

Nunca fui um excelente galanteador, mas a longo prazo geralmente tudo acabava bem. Mulheres gostam de homens de atitude e nem sempre isso é fácil no mundo masculino, porém acreditava estar bem perto disso.

Algumas vezes acabava me perguntando: e se ela namorasse? Se vivesse com alguém? Se fosse ocupada demais ou carregasse infindáveis empecilhos? A verdade é que nada disso importava. Acreditava no meu potencial. Nem sabia ao certo se iríamos mesmo nos conhecer, mas caso isso acontecesse e ela se apresentasse de uma forma que realmente valesse a pena, lutaria para que ela fosse minha, mesmo que fosse apenas por uma noite.



quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Quando se Desce Ladeira Abaixo

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Caminhava ladeira abaixo perseguida por uma terrível geada. Um dos relógios de rua apontava 10°C e eu era o único ser humano que caminhava nas ruas em um perímetro de dez ou treze quadras. Certas horas da noite não existem mais calçadas, não sei o motivo, mas em pequenas ruas tinha a preferência de caminhar pela rua beirando a calçada. De madrugada o receio de ser surpreendido por um cão mal-humorado ou um mendigo dormindo talvez sejam alguns dos motivos. O pior seria um mendigo com um cachorro. Não muito difícil de acontecer.

Ainda descia, quando fazia minhas pernas as únicas aliadas na volta para casa. Fui pego de surpresa, por um descuido de um sujeito que tinha deixado, para minha infelicidade, o portão de sua casa aberta. Um cão não muito sociável apareceu, encarava-me como se fosse o mais temível de seus inimigos, para minha surpresa mais uma vez. Não era diferente de alguns cães que eu conhecia, como de uma vizinha minha. O cachorro, que era uma mistura mutante de dogue alemão com um “tilofossauro rex” (na verdade nem existiu um tilofossauro rex , e sim uma expressão usada pelo meu pai para citar animais extremamente grandes, e não diferente dele gosto de usar essa palavra). Lembrei que ainda continuava em sinal de perigo. Como mal conseguia caminhar imaginei que correndo seria, talvez, um pouco diferente, pois em uma fração de segundos calculei na minha mente, mais ou menos, aquela equação absurda de uma física básica que correndo eu teria mais equilíbrio do que andando. E obviamente minha fuga seria mais rápida, imaginei. Merda. Nunca fui bom em física, havia me lembrado. Se pelo menos tivesse do meu lado aquele nerd, que era gênio em física, química, matemática entre tantos, mas infeliz no amor. Ele poderia ter dado aquela força e me lembrar que eu era uma causa perdida em física. Que segundo os dias de hoje – “Sem sorte no amor, feliz nas exatas” - No colegial era bem aplicada essa frase. Somente a queda me fez parar de ter nostalgia.

Não havia visto, ou pensei que não havia visto aqueles pequenos arcos que enfeitam aquele lindo jardim na calçada da residência. Não mesmo. Então em uma crise de epifania, João do Pulo me deu algumas dicas para superar meus obstáculos. Pulei uma, duas, na terceira você sempre roda. Havia superado dois de três obstáculos, o cachorro estava de focinho aberto quando, enfim, seu desejo havia sido concretizado. A noite foi tomado por fantasmas do passado (literalmente). Se por um lado, João do Pulo tinha facilitado meu lado com algumas dicas, por outro o espírito do Bob, o construtor havia reencarnado e em uma fração de segundos construiu um arco (do triunfo, mas essa colocação na era das melhores no momento), muito maior que os outros. Foi onde me pé pisou em falso, não satisfeito de presente ainda ralei a canela quase até o joelho. Interessante que me esqueci da canela bem rápido, pois não conseguia me concentrar com o bafo do cachorro na minha cara.

A briga era injusta. O tamanho dos oponentes era desigual. O cachorro era duas vezes maior que eu. Sem exageros. Eu agarrava pelo seu pescoço enquanto ele tentava morder minha cara. Tinha receio de tirar uma de minhas mãos para poder executar alguns socos, e o medo estava me fazendo apertar tão forte que talvez eu tivesse alguma vantagem. Meu jiu-jitsu não estava atualizado, não havia condições de eu conseguir sair de baixo. Provavelmente o dono era um daqueles boladões sem massa cefálica, um por deixar o portão aberto, e outro por ser daqueles idiotas que ficam rolando e brincando de jiu-jitsu com ele. Que pro sinal estava bem preparado. Podia parecer estranho, mas começava a gostar da brincadeira. Dei-lhe um soco, tentei lhe enforcar, chutar seu saco e até morder. E o cachorro sempre em vantagem.

A briga tinha virado de gente grande, já tinha aquecido minhas juntas e engenhava um arm- lock voador giratório. Quando estava preste a finalizá-lo senti um movimento diferente. Afastei um pouco sue cabeção e reparei que ele estava fazendo movimentos com a parte traseira. OPAAHH, para a canção, mandei cessar a canção!! – Que porra é essa. “Cão, o taradão da madrugada”. Era incrível como o mundo conspirava sobre mim.
O momento de irritação fez-me ter uma incrível força, sendo o suficiente para chutá-lo longe de mim.

- Vai pfftoma nouu CÚÚÚÚÚ!!! – Babava e tentava gritar ao mesmo tempo – Cão filho da puta!!

Pronto, intimei. Saiu correndo para dentro do portão. Cuspia alguns pêlos que estavam na minha boca enquanto batia as mangas da blusa com minha mão. Estava tão puto que trotava igual a um cavalo. Voltei para casa indignado com o acontecimento, com o tamanho daquele cachorro ele podia ter feito um estrago em mim. Nessa hora pensei ter tido sorte por não usar saia.

Mas enfim tudo estava nos conformes, e ri quando imaginei o que o tal boladão andava brincando com esse cachorro. O reflexo do dono se espelha em seu cachorro. Os meus só sabiam comer e dormir.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Aquarela pelo céu

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Mais um dia de trabalho chegava ao fim. Encontraria um amigo logo, logo, mas deveria esperar no mínimo uma hora e meia para podermos jantar em uma das melhores hamburguerias da cidade. Resolvi fazer todo trajeto a pé. Perderia muitos minutos e ainda enganaria meu corpo sedentário fingindo fazer algum exercício. Iria do Anhangabaú até o início da Av. Dr. Arnaldo. Era ridículo, pois esse seria o primeiro esforço físico real que praticava em muitos meses.

Era uma bela noite. Finalmente os inúmeros temporais de verão haviam dado uma trégua. A cidade estava completamente alagada, mas os céus pareciam festejar. O sol se despedia em meio uma gama de nuvens rosas, amarelas e laranjas , lembrando incríveis desenhos feitos em aquarela acima dos nebulosos prédios. Observava o movimente enquanto andava a passos lentos. Vias os carros, o trânsito, o estresse de uma das maiores cidades do mundo. Tinha tempo para reparar nas lindas garotas que desfilavam pela rua, para conversar comigo mesmo, para apreciar a vida, refletir e, também, para rir do caos a minha volta.

Nesse meio tempo, acabei chegando ao meu destino muito mais rápido do que esperava. Levei apenas quarenta e cinco minutos. Não estava cansando e meu humor andava melhor do que poderíamos esperar. Parei por um momento naquela gigantesca quitanda 24 horas, que vendia açaí e muitos outros produtos naturais, frutas etc. Passava por lá todos os dias, mas aquela era apenas a segunda vez que pisava por ali. A primeira havia sido com duas belas amigas, numa ótima tarde de domingo, três dias atrás. No caminho até a latrina pude ver mais algumas belas mulheres conversando. Preciso começar a me policiar. Flertar está deixando de ser um passatempo e tornando-se um vício. Isso poderá trazer alguns inconvenientes mais tarde. Brigas, fim de namoro e outras perversas chateações.

Como estava bastante adiantado, parei num boteco de esquina para esperar. Comprei uma garrafa d’água e sentei-me para ler. A autobiografia de Keith Richards estava me rendendo bons momentos. Intercalando entre os parágrafos, olhava ao meu redor para analisar o ambiente. A cada piscar de olhos, percebia cada vez mais a imundice que aquele lugar se encontrava. O famoso boteco sujo. A casa de todos os bêbados. O telefone celular resolveu tocar após alguns capítulos:

- E ai, Tiba! – Um apelido engraçado, mas ao mesmo tempo bastante homossexual, pelo qual ele me chamava - Onde você está, meu velho?
- E ai, meu chapa! Estou no boteco aqui da esquina. Já estou indo, espere um pouco. Abraços!
- Falou!

Terminei a página com calma e paguei minha conta. Era um verdadeiro elogio dizer que aquele lugar possuía alguma conta. Lixo, sujeira e alcoólatras por todos os lados. Não vou estranhar nem um pouco se surgir alguma doença desconhecida no meu próximo exame de sangue. Encontrei meu novo velho amigo em frente ao Burdog. Ele me aguardava com suas feições turcas e suas ótimas piadas ao lado da entrada principal. Um sujeito engraçado. Cumprimentou-me e partimos para uma volta no quarteirão.

Descemos a rua e o cigarro foi aceso. Algumas belas tragadas e viramos na primeira rua a direita. Era simples e sem movimento. Mais alguns tragos. Outra curva a direita. Os sentidos estavam cada vez mais apurados. Os cães latiam sem parar. Já nos encontrávamos em um estado bastante benevolente. Entramos na última rua para que a volta estivesse completa. Ficaria um pouco mais burro pelas próximas duas horas. A última cinza foi jogada ao chão. Paramos novamente em frente à lanchonete e decidimos entrar.

Era uma terça-feira, mas o local estava lotado. Sentamo-nos próximos a janela. As piadas seguiam em um ritmo frenético. Estava uma noite bastante engraçada. Perdemos alguns minutos até fazer o pedido. Escolhemos com cautela um delicioso Cheese Calabresa Zé Mineiro. Um molho fantástico! Enquanto aguardávamos, ficamos observando um flanelinha que cuidava dos carros na rua sem saída logo ao lado. Era um sujeito bastante diferente. Possuía grandes trejeitos homossexuais, uma fala mansa e arrastada, um rabo de cavalo peculiar e um rebolar nem um pouco sensual. Este era o guardador de carros mais peculiar que já havia visto em toda minha vida.

O precioso lanche chegou junto com uma Fanta Uva. Muitos dizem que este é o refrigerante mais odiado pela população. Outros, que apenas sujeitos goiabas e mequetrefes apreciavam tal sabor. Danem-se todos os preconceitos! Esse é certamente o refresco mais injustiçado de todos os tempos. Dei a primeira mordida. Meu Deus! Estava divino. A conversa acabou a partir do momento que apreciamos o indescritível alimento. Passamos toda a jornada em silêncio até que a comida finalmente estivesse repousando dentro de nossos estômagos. Não existem palavras para descrever tamanho deleite.

Assim que terminamos, resolvemos refletir sobre o que tinha acabado de acontecer. Nesse meio tempo, observava uma mesa oposta a minha. Um grupo de meninas que se divertiam com assuntos indecifráveis. Podia dizer que senti um pouco de raiva. Como podiam ser tão bonitas? Sorriam. Despachavam olhares inesquecíveis. O que podemos dizer? Talvez cada um nasça com aquilo que mereça.

Já estava chegando o momento de partir. Pagamos a conta, recolhemos nossos pertences e saímos. Convenci meu companheiro a irmos a pé até o Metrô Sumaré. Não era longe, mas depois de uma ótima janta, o caminho ficaria um pouco árduo. Fomos, novamente, a passos lentos. Durante o trajeto, pude ver centenas de baratas pelo caminho. Não sei se era por causa do cemitério que cortava toda a avenida ou pelo calor incrível que fazia, mas elas estavam por todas as partes. Jamais havia visto tantas em um só dia. Por toda calçada, debaixo dos sacos de lixo, atrás dos portões. O que estava acontecendo? Uma incrível paródia sul americana sobre Joe e as baratas? Devo ter esmagado, no mínimo, dez delas durante o percurso. O fim dos tempos estava cada vez mais perto.

Chegamos ao ponto. Observei os carros por cima da ponte. As infindáveis luzes da cidade e dos carros que circulam tornam os detalhes noturnos muito mais agradáveis. Fiz mais uma piada e meu ônibus chegou. Despedi-me e subi. Paguei a passagem e sentei no velho banco de apenas um lugar. Coloquei meus pés sobre a grade e relaxei. Devia pensar que estava em casa. Certamente o transporte público é o terceiro lugar que mais perco meu tempo enquanto a vida passa.

Uma linda garota oriental passou pela catraca. Havia muitos lugares vazios, mas ela acabou esperando em pé enquanto não chegávamos ao destino. E mais uma vez fiquei hipnotizado com tamanha beleza. Ela postou-se alguns metros a minha frente. Certamente ela percebeu que não conseguia de modo algum desviar meus olhos. Talvez tenha ficado sem graça ou inflado seu ego um pouco mais. Não era minha culpa. Ela era mágica. O que eu podia fazer? Claro que ela não me deu sinal algum. Nenhum sorriso nem mesmo um rápido olhar. Passei a observá-la pelo reflexo da janela.  Aquele que disser que nunca fez algo do tipo, no ônibus ou no metro, é o maior patife e mentiroso que já vi. Fiquei todo o caminho realmente encantado com suas feições. Um hábito dos novos tempos.

Devia descer. Esperei e esperei, mas ela não demonstrou nenhum sinal que sairia no mesmo ponto que eu. Droga! Provavelmente nunca mais voltaria a vê-la. Os bares estavam vazios. Esperei o sinal abrir e atravessei. Era uma grande ladeira e uma brisa refrescante soprava contra meu caminho. Uma ótima sensação. Pulei alguns degraus em grande êxtase. Minha casa ficava há alguns metros dali. É, meus caros, poderia francamente dizer que eu era um rapaz de sorte.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Dia de fúria

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Você está acordado? Hein? BAM, BAM, BAM! Levante-se! Você precisa ir ao banco. Depois ao supermercado. Aproveite que você está de pé e faça um telefonema para mim, por favor. Desça e dê remédio para o cachorro. Leve sua irmã para a recuperação. Pague as contas. Faça um resgate. Resolva os problemas com os inquilinos. Ligue para a Sabesp. Fale com o seguro. Contrate uma cuidadora de idosos confiável. Vá buscar os exames da sua avó. Vá para a faculdade. Vá consertar o carro. Vá trabalhar. Vá tomar no cú! Viver, algumas vezes, é uma puta encheção de saco.

Mal acordo e já me impõem quarenta e oito tarefas imprescindíveis como se eu não soubesse mais quais são minhas verdadeiras obrigações. Essa chuva de lamentações e ordens antes mesmo que eu tenha tempo de ir ao banheiro, urinar, lavar o rosto e refletir um pouco sobre outro dia que começa. Claro, você fica bem puto! “Você acordou de mau humor hoje, hein?” Para não ter que ofender e hostilizar as pessoas que estão a minha volta, acabo guardando todos os insultos comigo.

Tomo um copo de leite e coloco Be Here Now para tocar. Vou para o banho. O ralo está entupido. A água demora a descer e uma grande poça cheia de água e sabão molha toda a superfície do box e mais um pouco do banheiro. Seco-me, visto as roupas, pego a chave do carro e vou para a garagem. Olho o automóvel e lembro-me que ele está batido. Um prejuízo de R$ 3.000,00. Abro a porta amassada, entro e dou a partida. O dever me chama. Continuo puto!

Chegando a clínica, um gordo simpático me atende muito bem. Faz o seu trabalho e me pede para aguardar. Tento ser paciente e educadamente vou me sentar ao lado do bebedouro. Dez minutos, vinte minutos, vinte e cinco. O gordo retorna.

- Senhor, estamos com um pequeno problema, mas já estou resolvendo seu caso. Logo, logo terei uma resposta. Parece que um dos exames extraviou.
- Extraviou? – A veia do pescoço pulsa bastante visível a olho nu. – E quanto tempo deve demorar?
- Não tenho certeza, senhor.
- Tudo bem! – O pulso ainda pulsa! – Irei resolver algumas coisas e mais tarde passo aqui para pegar.

Não digo adeus nem bom dia, apenas vou-me embora. Parto para o banco. Não há nenhum lugar para estacionar. Deixo o carro em local proibido com o pisca alerta ligado. A fila é grande. Havia me esquecido que era dia de pagamento. Os caixas lotados fazem-me esperar mais uma vez. Aguardo e então uso um caixa eletrônico para pagar as contas e fazer um saque. Água, luz, TV a cabo, plano de saúde, escola, faculdade, clube, internet, gás etc... Meu Deus! Não me lembro de alguma vez terem me enviado algum dinheiro pelo Correios, mas contas, essas sim, não cessam nunca de chegar.

Saio do banco e agradeço aos céus por não ter tomado nenhuma multa. Mais uma hora se foi. Dirijo-me ao supermercado. Está cheio. Paro o carro em frente a cancela. O segurança me olha intrigado e pensa que “mais um babaca bateu o carro e terá de descer do veículo para pegar seu tíquete.” Ele apenas sorri. E eu, como mais um idiota com o carro batido, puxo o freio de mão, abro a porta, saio, pego o tíquete e a cancela se abre. Volto para o carro e estaciono. Procuro por algum carrinho, mas não vejo absolutamente nenhum. Será que havia esquecido que era o dia mundial de fazer compras? Após aguardar alguns minutos, vejo uma funcionária empurrando um carrinho vazio. Tento chamá-la.

– Senhora! – Ela não ouve.
– Senhora, por favor! – Falo um pouco mais alto, mas ela continua a empurrar.
– Minha senhora, por favor, eu preciso desse carrinho! – Mesmo gritando, ela não escuta.
Ela larga o carrinho no compartimento reservado e volta para terminar suas obrigações. Esbravejo:
- PUTA QUE O PARIU!!! – A pequena senhora olha para trás com o rosto assustado. Dessa vez você ouviu, hein? Não diz nada, pensa um pouco e se vai.

Tentei ser educado várias vezes e não adiantou. Tudo bem, admito, eu estava errado. Eram apenas 9h53 da manhã e a idosa trabalhadora já havia ouvido um belo xingamento logo no início do dia. Talvez ela também fosse passar por uma jornada difícil.

Subindo a pequena passarela, avisto um casal. A garota é linda. Eles se beijam, se abraçam e riem. Posso ver em seus olhos. Ela o ama. Sinto uma ponta de inveja e percebo o quanto sou egoísta. Não amava profundamente ninguém há mais de dois anos. Havia dispensado duas lindas mulheres que realmente queriam estar ao meu lado e agora esperava um amor irreconhecível? Nunca estar satisfeito é um dos maiores problemas da consciência humana. Continuei andando e parti para as compras. Namorar por conformismo nunca havia sido uma opção.

Frutas, carnes, congelados, produtos de limpeza, álcool, besteiras. Mais uma hora se foi. Espero na fila para pagar. Está bastante grande. Mais uma quinzena de minutos perdida. Passo o cartão, vou para o carro, guardo as compras e dou a partida. Chego na cancela e mais uma vez o idiota precisa descer do automóvel para liberar a passagem.O segurança novamente sorri. Fico ainda mais puto.

Sigo direto para a clínica. Paro o carro em frente a entrada principal e vou verificar se o exame restante, finalmente, ficou pronto. O gordo imbecil continua lá. Ele e seu sorriso contagiante estampado na face. Olha para os lados, me vê e suspira. Lá vem merda!

- Senhor, conversei com os responsáveis, mas o exame continua em análise. A previsão é que fique pronto por volta das três da tarde. – Olho para o céu. Vejo apenas um teto imundo e respiro. Acho que minha artéria vai explodir.
- Está certo, volto depois. – Não havia cordialidade alguma em minha voz. Eu não tinha esse tempo disponível.

Outra vez vou-me embora. Não digo até logo nem mesmo boa tarde. Entro novamente no veículo e ligo para minha irmã.  Uma voz nunca ouvida antes me dá as boas vindas.

- Alô! Alô – Analiso. É uma versão homossexual do Patolino.
- Chame a minha irmã, por favor! – Estava sério.
- Beleza, peraê! – Concluo que o personagem infantil gay é mais uma grande sátira da vida.
- Alô! – Ela pára e ri um pouco, enquanto faço uma boa piada sobre seu amigo.
- Vá para frente da escola, que daqui a pouco estou por ai para te pegar! Tchau.

Dirijo-me até o colégio. Minha irmã vê o carro passando e se despede de todos. Ela está linda como sempre. Tem apenas quatorze. Mais alguns anos e terei problemas. As mulheres mais bonitas fazem questão de estarem sempre com os homens mais idiotas. É uma regra social que dificilmente é quebrada. Cedo ou tarde ela aprenderia. Lágrimas e revoltas. A porcaria inconfundível da adolescência. Ela entra e voltamos ao lar.

Almoço, pego minhas coisas e vou para o trabalho. Dessa vez o trajeto será percorrido de ônibus. O calor infernal derrete minha alma. Dou o sinal e entro. Está lotado. Nenhum lugar para sentar. Esbarro em muitos e peço desculpa a cada nova curva. Notas do subterrâneo continua guardado na mochila. Ler em pé é um dos novos desafios metropolitanos. Ainda puto!

Chego ao destino. Cumprimento todos e dou um rápido telefona. Preciso ser rápido e partir. Devo entrevistar um homem no vigésimo sétimo andar de um prédio a algumas quadras de distância. Não estou com saco nenhum para descobrir, conhecer e desvendar gente nova. Ossos do ofício, e eu preciso cumpri-los.

Estou suando. Continuo a correr. Apolo ri da minha cara. Entro e pego o elevador. Subo, penso, reflito, viajo. O elevador continua a subir. Saio, agradeço a ascensorista e apresento-me ao entrevistado. Conversamos. Faço anotações. Pergunto. Tiro fotos. Ele continua a falar. O tempo passa. Ele tagarelando, eu escrevendo. A entrevista termina. Despeço-me e vou embora. Quando chego até a rua, recebo uma linda surpresa. Está chovendo. São Paulo, A Cidade da Garoa, pegue seu guarda chuva e sorria. É apenas um chuvisco. Decido continuar. Decisão errada. No meio do caminho, o chuvisco torna-se um temporal gigantesco.Praticamente um dilúvio. Chuva vinda de cima, de lado, de frente, de baixo. Maldito verão! Estou ensopado. A água corre, os sapatos parecem duas pranchas de surfe. Espero embaixo de um toldo de um boteco nojento recheado de alcoólatras e prostitutas. A chuva dá trégua e volto para o trabalho.

Encharcado, paro no oitavo andar, no qual fica a enfermaria, para pedir qualquer remédio contra gripe ou resfriado. Quer ouvir a novidade? Eles não têm esse tipo esse tipo de medicamento. Enfermaria? Afinal, que grande porcaria era aquela? O ar condicionado iria acabar com todas as minhas defesas. Resumindo, eu estava completamente fodido. Iria adoecer. Pela primeira vez compreendi o verdadeiro ódio de Michael Douglas. Estava muito, mas muito puto. Era um dia de fúria!

Continuo com meu serviço. Não houve mais novidades. Termino minhas obrigações. A cidade está inundada. José Luiz Datena delira. Era um ótimo dia para o sensacionalismo. Vou até a copa. O chá acabou. Não quero café. Volto de mãos abanando. Pego minhas coisas. Está anoitecendo.  Despeço-me de todos e vou para o ponto.

A chuva continua. O ônibus demora a chegar como nunca demorara antes. O trânsito é memorável. Sento-me. Impaciente, esqueço-me de viver. Não consigo mais contar as horas. Finalmente consigo chegar em casa. Minha bunda parece um cubo! Converso com os cães. Pelo menos meus fieis amigos de quatro patas não possuem nenhuma crítica a fazer. Subo as escadas. Tiro as roupas molhadas e jogo tudo pelos ares. A meia gruda na parede. Recordo que me esqueci de passar na farmácia. Fico, outra vez, puto. Deito-me exausto na cama. Ligo a TV. Desisto. A vida venceu.



segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Jagged Little Pill

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Estava sentado com o joelho sobre o banco e o braço direito apoiado sobre a mesma perna. O pulso balançava enquanto ele observava o movimento. Estava postado exatamente em frente ao elevador do oitavo andar. Cada vez que o sinal tocava, uma garota mais linda que a outra chegava para retomar seus estudos. Com paixões instantâneas a cada minuto, dava-se conta que havia matriculando-se na faculdade errada, afinal estava ali observando magníficas beldades apenas para esperar seu amigo ganhar presença para que, então, pudessem ir até o bar na avenida mais próxima.

Após um quarto de hora, seu companheiro saiu da sala com uma das mulheres mais lindas que ele já havia tido a oportunidade de ver. Branca como a neve, longos cabelos negros até o meio das costas, um sorriso incrível e um olhar, no mínimo, cativante. Poderia gritar versos de amor para um telhado de cimento. Era exatamente o seu tipo. O tipo que mais lhe encantava. Apresentaram-se e começaram a discutir sobre o preocupante trabalho. Ela precisava ensaiar suas falas para a apresentação de um seminário e acabou usando os dois como cobaia. Seu amigo fazia o possível para tentar ajudar, mas ele, o protagonista, claro, nunca havia tido uma aula sequer de marketing, não fazia idéia sobre o que estavam falando e, mesmo que se esforçasse, a única coisa que realmente lhe prendia a atenção era a impressionante beleza daquela menina.

Mais um tempo se passou e a garota mágica voltou à sala para terminar seu propósito. Os dois desceram até a rua para fumar um cigarro, tomar alguns goles de cerveja e voltar ao lar para acabar mais uma quinta-feira em grande estilo. Nove tragadas e três copos de cerveja eram mais que suficientes para deixá-lo em um estado benevolente e bastante agradável. Bateram um papo, contaram boas piadas sobre a vida medíocre que cada um deles levava e nosso personagem pôde fazer algumas novas amizades que provavelmente nunca mais voltaria a ver.

O caminho de volta no velho ônibus não foi tão agradável assim, pois àquela altura gostaria muito de ouvir uma bela canção, mas não havia nenhum meio disponível para tal. A leitura talvez viesse a calhar, mas Don Quixote não era o livro mais apropriado para o momento. Bukowski ou Hemingway cairia bem, porém não havia um modelo útil disponível. Aproveitou a brisa que chegava pela janela e contentou-se apenas em admirar as luzes e os carros que passavam em alta velocidade.

Outra vez em casa. Cansado, feliz e lembrando-se de como existem pessoas apaixonantes a cada nova esquina. Girou as chaves e cumprimentou os cães que o aguardavam com uma felicidade incomum. Abriu a geladeira e agradeceu aos céus por encontrar uma bela porção de lasanha que ainda sobrara do almoço. Era um caso raro chegar ao lar e não ter que encarar pela frente mais um prato de arroz e bife como vinha acontecendo nos últimos quinze anos, sem interrupções. O mesmo prato por mais da metade da vida costuma, ao menos, ficar um pouco enjoativo.

Carregando o peso de mais um dia de estudos e trabalho, atirou-se de cabeça na Internet para se atualizar sobre as notícias de última hora e pesquisar artigos de cultura inútil. Durante esse pequeno passeio, acabou descobrindo que um álbum da Alanis Morissette havia vendido mais de trinta milhões de cópias ao redor de todo o mundo. Como um disco dela poderia ter feito tanto sucesso assim? Era óbvio que subestimava seu talento e precisava comprovar por si mesmo que tinha algo errado em suas próprias concepções. Graças a internet, ouvir o disco em tempo real não foi problema algum. Seus avós não faziam idéia do quanto tudo é fácil nos dias de hoje. Informação, sexo e violência. O mundo se tornou uma estação aberta para todo o tipo de alegrias e desgraças.

Já o disco, meu Deus! Fazia tempo que uma descoberta musical não o pegava de surpresa. Que voz, que belas composições. Talvez merecesse mesmo ter vendido tanto. Talvez. Depois de muito ouvir, ainda carregava uma pequena dúvida. Não conseguia ter absoluta certeza se o álbum era realmente incrível ou se estava pouco a pouco se tornando homossexual. Não que tivesse dúvidas concretas sobre sua masculinidade, mas não lembrava-se de ter conhecido algum heterossexual que considerava Jagged Little Pill um dos seus CDs favoritos ou que fosse seu fã incondicional. O único amigo que admitia esse gosto peculiar tinha Buffy, A Caça Vampiros  como sua série de TV preferida, portanto não poderia ser levado 100% em consideração.

Voltou à cama enquanto You Oughta Know tocava pela terceira vez e aos poucos foi deixando o sono lhe dominar. Uma aula de revolta para expressar angustias em grande estilo. Provavelmente o cara tenha sido mesmo um grandessíssimo filho da puta, porém acreditava, e hoje tem ainda mais certeza, que mulheres rancorosas nunca conseguem ser totalmente racionais lidando com certas mágoas, por isso era difícil digerir com convicção todas aquelas insinuações. Era ótimo sentir o edredom esquentando-lhe o corpo em uma noite fria. O efeito do álcool e dos cigarros persistia levemente. Nem percebeu quando seus olhos se fecharam. Cair no sono embriagado era o segundo modo para adormecer que mais lhe agradava.  O primeiro era, sem nenhuma discussão, deixar-se levar depois de um belo orgasmo enquanto uma linda garota acariciava os seus cabelos. Infelizmente, esse não fora o caso naquela noite.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Você

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Seria fácil demais
Tentar entender
Seu toque, seus gestos, seu jeito
Sua forma de ver, sorrir, viver
Apenas um beijo

Não seria nada incomum
Encantar-se, deixar-se levar
Sentir-se completo
E não perceber
Por estar mais uma vez ao seu lado

A voz, o riso
O modo delicado
Para tentar esconder
Para brindar, para escolher
Um carinho

É simples
É mágico
Deixar-se seduzir
Quando você é, mais uma vez
Somente você mesma

Cativante, apaixonante
Serena e delicada
A cada abraço, a cada beijo no rosto
A cada encontro
Um presente, uma paixão

Sonho, digo, espero e finjo
Admiro
Escravizo minhas emoções
Enquanto luto para conquistar seu coração
Enquanto me esforço para trazer você para mim

Não importam mais
Os medos, os fracassos
Empecilhos e defeitos
Vontades e receios
Se já fora de muitos
Ou de ninguém
Ainda te levarei ao topo
Pois a única coisa que me importa agora
É você

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Incógnitas e certezas

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Minha memória não andava lá essas coisas! Estava abusando um pouco da hospitalidade alheia. Não valia muito a pena viver como um rock star se você ainda não fosse um. Ainda bem que eu tinha consciência suficiente para lembrar-me que as segundas-feiras eu precisava retornar ao mundo real.

Estar fora de controle desde as 14h podia parecer um pouco preocupante, mas não era motivo para reclamações. Seria muita hipocrisia dizer que não estava valendo a pena. Cervejas, cigarros e as cinzas espalhadas pelo tapete. Estávamos tocando cada vez melhor. Era impossível não gargalhar ao menos uma vez. Tinha motivos de sobra para estar feliz. A depressão certamente nunca seria o estilo de vida certo para mim. O humor sempre foi uma arma eficiente para vencer obstáculos emocionais. Uma vez ouvi dizer que só começamos a amadurecer quando conseguimos rir daquilo que um dia nos fez chorar.

Antigos desejos voltaram a bater na minha porta. Nem todos foram aquilo que eu esperava, mas não seria certo recusar tais presentes. Muitas vezes as coisas acontecem de um modo totalmente diferente daquilo que planejamos e fico impressionado quando aparecem no momento que menos estamos esperando. Graças aos céus ela era linda, senão me arrependeria muito por tê-la cortejado tanto. Porém tinha certeza que algo muito bom ainda estava por vir, portanto seria ótimo ter paciência e perceber as verdadeiras intenções. Não é nada agradável dar com a cara no muro, mas, o que podemos fazer, somos humanos e ocasionalmente falhamos.

Apreciar um excelente almoço em uma bela tarde de domingo também pode ser reconfortante. A companhia faz toda a diferença e o estado de espírito contribui com o sabor da refeição. Espero que meu saquê nunca fique amargo, não seria um bom sinal. A única parte difícil do trajeto é ter de lidar com pessoas indesejadas em um ambiente inóspito, isso se você não está 100% sóbrio há um par de horas. Fica difícil passar uma boa impressão quando não temos intimidade para dizer a verdade ou escolher um ótimo jogo de palavras para fugir da situação. Nem sempre uma pessoa que lhe conhece há mais de cinco anos pode te deixar a vontade em encontros repentinos. Sendo novo ou velho, a sátira da vida sempre continua.

Preciso arrumar tempo para preencher minha lacuna de inspirações. Não têm sido fácil escrever ou compor, mas geralmente o que menos me agrada acaba sendo o que todos mais apreciam. Uma ironia que deixa-me dúvidas com relação ao meu real senso de qualidade. Quem sabe um novo amor fosse ideal para lançar-me em busca de novos horizontes? É uma pena não termos capacidade de controlar nossas paixões, mas podemos sempre estar abertos a novas experiências. Aquela pequena e linda garota talvez possa te levar a lugares aos quais você nunca sonhou visitar. Viver sempre será uma infinita incógnita, por isso tudo continua valendo a pena.


segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Ponto fraco

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Ainda era impossível entender o quanto ela conseguia impressioná-lo. Eles não se conheciam profundamente, não eram amigos íntimos e não possuíam quase nenhuma ligação em comum, mas mesmo assim aquela linda garota de pele clara como a neve e pequenos e inesquecíveis olhos negros lhe deixava completamente fora de sintonia.

Já havia tido a oportunidade para sentir raiva, indiferença ou simplesmente esquecer tudo o que lhe atraía, mas ela era bonita demais para que ele conseguisse lembrar-se de todos os imprevistos enquanto ela estivesse presente. Bastava apenas uma troca de olhares, observá-la alguns segundos ao longe ou vê-la passar lentamente sorrindo pelo corredor, que já era um motivo mais que suficiente para que ela dominasse completamente todos os seus pensamentos.

Toda vez que a encontrava, era impossível deixar de se perguntar como alguém podia ser tão linda. No fundo sabia que talvez ela não fosse a garota mais incrível que já existiu, mas não importava, porque para ele, independentemente do que lhe dissessem, ela sempre seria a mais bela. Amor? Obviamente não, ainda não haviam tido oportunidades suficientes para conceberem tal sentimento. Paixão? Talvez um pouco. Admiração? Essa provavelmente era a única certeza que ele tinha, pois era impossível não parar um segundo para apreciar tamanha beleza.

Porém algumas dúvidas faziam questão de atormentá-lo e, por mais que se esforçasse, não conseguia recordar que algo assim tenha acontecido antes. O seu jeito? O seu olhar? Não era a tarefa mais fácil conseguir explicar. Estava claro que ela fazia o seu tipo mais do que ninguém, mas isso acabava tirando-o do sério algumas vezes. Ela gostava de jogar e, mesmo que tentasse, ele não conseguia escapar do jogo. Não sabia exatamente se está era a expressão certa a ser usada, mas se existia algum ponto fraco evidente em sua personalidade, sem dúvida alguma, era ela.

O livro ainda não estava aberto para esclarecer onde tudo isso iria terminar, mas era o momento ideal para “esperar pelo melhor, preparar-se para o pior e aceitar o que vier.”



terça-feira, 5 de outubro de 2010

Transparecer


Acordava todas as manhãs com uma incrível dúvida. As respostas nunca vieram e a inquietação tornava-se inevitável. Possuía muitos atributos, mas não era a tarefa mais fácil se abrir com qualquer pessoa que valia a pena e deixar transparecer seus verdadeiros talentos. Talvez fosse esse um pequeno erro de sua conduta que lhe privava de algumas belas felicidades.

Ironicamente ele ainda se considerava um escritor. Um romance mal sucedido e alguns textos e contos publicados não lhe traziam ainda a completa satisfação. Experiências anteriores fizeram-lhe acreditar que os escritores deviam manter-se completamente calados, pois eles só conseguem expressar realmente aquilo que pensam e desejam quando estão com uma caneta nas mãos. São cheios de complexos, medos e revoltas, mas sempre encontram alguma chance para mostrarem como são imbecis nos momentos menos oportunos, deixando todos os envolvidos com a única impressão sua a respeito que não é verdadeira. Essa, provavelmente, seja a melhor explicação para entender porque a grande maioria deles ainda seja pobre, alcoólatra ou viciada.

Nos momentos difíceis, acabava indo contra seus próprios princípios. Atualmente passou a se perguntar se o amor era uma felicidade dos idiotas ou se somente os idiotas perdiam seu precioso tempo amando. Quanto mais dias, meses e anos passavam, percebia que ficava cada vez mais difícil se apaixonar. Para sua sorte, uma amiga mostrou-lhe que, apesar de tudo, ele não era o único que vivia tal situação. O ano não havia sido dos mais felizes, é verdade, mas isso não justificava a grande série de fracassos. Na verdade, se parasse um pouco para pensar, não havia existido absolutamente quase nenhum, porém seu ego era grande demais para que ele entendesse isso facilmente. A insegurança continuava sendo a porta de entrada para que as coisas não dessem certo. Seria ótimo se ele fosse capaz de agir da maneira como pensa, mas infelizmente ainda não podemos escolher a cruz que iremos carregar.

The Rolling Stones passaram a ser, mais uma vez, uma grande fonte de distração enquanto as doenças não resolvessem ir embora. Worried About You foi uma daquelas faixas perdidas que mostraram que, mesmo nos anos 1980, Mick Jagger e Keith Richards podiam ser ainda muito bons. Uma bela canção.

Graças aos céus um feriado estava por vir e mais uma chance de vitória chegaria. As nuvens negras resolveram se dissipar e os primeiros raios de sol começaram a brilhar sobre sua janela. Ouvir os pássaros cantarem ajudava a alegrar seu interior. Ainda não era hora de levar a vida tão a sério. Haveria muito tempo de sobra para esquecer as mágoas, voltar a concluir suas metas e lutar para tentar realizar seus sonhos.



quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Despedida marcada

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Gostaria de lembrar o meu verdadeiro nome. Já fazia algum tempo que não a via, mas ela continuava linda. Talvez ainda mais incrível do que antes e, certamente, jamais seria capaz de perder tamanha beleza. Sentia-me feliz em poder ver que seus atributos rendiam-lhe grande admiração. Um brilho no céu e uma lágrima nos olhos. O último beijo foi o mais intenso e também o mais doloroso.

Lembrar, sentir, voltar, viver
Tentar, sorrir, chorar, correr
Doar, pedir, ganhar, vencer 
Lutar, medir, gostar, dizer
Sonhar, curtir, mostrar, fazer
Olhar, ouvir, ficar, temer
Tocar, fugir, dançar, querer
Andar, surgir, estar, sofrer
Beijar, partir, deixar, colher
Passar, abrir, transar, nascer
Pensar, dormir, cobrar, trazer
Deitar, seguir, trocar, mover

Ela se virou e sorriu. A leve brisa trouxe-me seu inesquecível aroma mais uma vez. Restavam singelas dúvidas, pois ainda me era impossível explicar o que realmente é o amor. O sol se pôs e o trem, finalmente, partiu.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Movimentando-se

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O elevador aos poucos ia se movimentando em baixa velocidade, quase que parando, até o destino assim desejado. O ambiente, que na madrugada, de tão quieto que se encontrava podia-se ouvir a respiração ofegante de um fumante compulsivo e sedentário. Naquele momento temia que o elevador parasse em qualquer andar que não fosse o seu, se baseando em algum roteiro de filme de terror, olhava fixamente, janela por janela passando. Oferecendo-lhe alguns cigarros e trocando histórias pela madrugada o porteiro da noite liberava a chave da cobertura. Um gesto um tanto que amigo para quem estava precisando.

Abria a porta e enfim estava em um espaço, parecendo que reservado, só dele. Alguns metros quadrados a exatamente treze andares das pessoas que caminhavam na rua, cercado por grades um tanto que peculiar. Estava preso assim como suas idéias. O vento que tocava suavemente seu rosto gélido contrariava a idéia do “estar preso”, dizia que enfim podia tentar novamente. Agora se colocando em posição de elogios, ao qual almejava, quase que gritando dentro de si, para que os outros enfim escutassem.

Em uma sequencia de passos firmes chegou à beirada e olhou o mar de luzes na sua frente. Diferente de Amélie Poulain, não imaginava quantas pessoas estavam tendo orgasmo naquele momento, e sim quantas pessoas estariam no alto de um prédio pensando quantas pessoas estariam também no alto de um prédio, fazendo exatamente a mesma pergunta que ele.

Insônia. Que te abandonara enfim o bom filho a casa torna. Em uma tentativa frustrante de acender um cigarro no alto de um prédio, com fósforos, o fez repensar o quão difícil é a vida. Exigente com tantos mortais, cobrando de tantas pessoas boas e beneficiando tantas outras ruins.

Havia garoado um dia antes e a poluição tinha se propagado, deixando amostra algumas tímidas estrelas para ele poder olhar, talvez sem razão, para elas. Pensou em anjos, cometas, aviões, OVNIS, pássaros, "Wild Horses” do Rolling Stones, na lua, nela, ou qualquer coisa do gênero que se pode lembrar quando se olha para o céu, em uma madrugada de inverno.

O celular um tanto que inquieto o fazia pensar que sua companhia não andava muito requisitada. Pudera, estava sentando na madrugada de sábado para domingo na cobertura de um prédio quieto e consolador.
Pequena história de um grande homem que não entende seu presente, pois o tema de seu romance é escrito com seis letras. Com a ponta de cada um dos cinco dedos conseguia tocar com cautela o mundo naquele momento. Tocou, o agarrou e puxou para si.

Estava para amanhecer, não arriscou para esperar o nascer do sol. Deixou uma parte de si lá, como deixa uma em cada lembrança. Com cautela, sem ao menos ninguém notar, estava aos poucos se transformando de adjetivo para metonímia.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Feriado prolongado

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O cigarro passava de mão em mão enquanto percorríamos a estrada. A cerveja no porta copos a minha direita era uma ótima saída para acompanhar a conversa. Como sempre, estava no banco do passageiro fazendo a seleção musical e organizando alguns pensamentos. Plastic Zoo, mais uma vez, assim como eu, continuava em seu lugar habitual: tocando no rádio a um volume considerável e empolgante. Havíamos comprado mantimentos, planejado os eventos posteriores e ansiávamos por um feriado promissor.

Já estávamos quase a uma hora na estrada quando problemas não esperados passaram a acontecer. O carro apresentou falhas e ameaçava desligar a qualquer momento. Olhamos o painel e percebendo o quanto tínhamos sido estúpidos, pois não paramos para abastecer. Não colocar combustível foi apenas uma das inúmeras idiotices as quais nos sujeitamos. Também nos demos conta de que o ar condicionado estava acionando durante todo o trajeto, consequentemente, gastando a gasolina, que não tínhamos, ainda mais rápido.

Não preciso me aprofundar na forma como ficamos apreensivos. Love Don’t Love Nobody fazia a trilha sonora do desespero ao mesmo tempo em que pedíamos aos céus para que um posto de gasolina surgisse a qualquer momento, mas, obviamente, em um certo ponto, o automóvel falharia para não mais funcionar e, claro, isso aconteceu. Estávamos na segunda faixa da esquerda e atravessamos até o acostamento, passando por duas faixas relativamente movimentadas e com o motor completamente desligado. Uma boa manobra de nosso motorista. Tivemos um pouco de sorte e conseguimos estacionar exatamente no ponto onde havia um telefone de socorro. Ligamos o pisca-alerta e fui incumbido de  pedir ajuda. Quando me postei em frente ao telefone, enxerguei apenas uma grade amarela. Não havia números, gancho e nada que fosse semelhante a um aparelho de telefone normal. Simplesmente não sabia o que fazer e acabei desistindo. Pensando melhor, era possível perceber que minha sanidade não andava 100% àquela altura. Mais uma burrice para completar a noite. Olhei as estrelas e conclui que, realmente, o amor não amava ninguém.

Coloquei os pensamentos em ordem e decidi usar o cérebro para algo útil. Telefonei para o 102 e consegui o número da administradora da estrada daquela região. Expliquei-lhes a situação e consegui que mandassem uma rota para averiguar o que havia acontecido. Quando fui avisar que algo bom tinha, finalmente, ocorrido, vi meu companheiro conversando com a grade amarela. Ele, ao contrário de mim, conseguiu usar o telefone de alguma forma que eu não podia entender. Assim que terminou, supliquei para que me mostrasse como utilizá-lo e ele me indicou um gigante botão vermelho que ficava logo abaixo da grade. Ainda não sei como não consegui vê-lo. Existia, agora, dois pedidos de socorro para o mesmo local. Nada mais precisava ser dito.

Aguardamos cerca de dez minutos até que a ajuda chegasse.  Um socorro bastante eficiente, pois pensava que ficaríamos esperando por algumas horas. A rota levou meu amigo até o posto mais próximo para que nosso pequeno problema fosse solucionado. Tive que aguardar ao lado do veículo até que retornassem.  Depois de mais alguns minutos um caminhão guincho se aproximou e parou em frente ao carro. “Meu Deus! E agora?” Não podíamos levar o carro, porque logo, logo retornariam com o combustível e estaríamos prontos para partir. Expliquei isso ao funcionário, mas ele já sabia do problema. Disse apenas que não poderia me deixar esperando sozinho já que estávamos em uma área de risco. Pelo rádio, avisou a rota que nos encontraríamos todos no próximo posto. Colocar o carro no caminhão foi mais um dos doze trabalhos de Hércules. Eram muitos botões e mecanismos para uma pessoa no estado que me encontrava, porém, com um pouco de concentração, tudo correu razoavelmente bem.

O posto de gasolina mais próximo encontrava-se, para nossa sorte, ou azar, a apenas três ou quatro curvas adiante. A rota estava lá e o caminhão guincho se aproximou. Descemos o automóvel e colocamos a sagrada gasolina. O carro voltou a funcionar e decidimos partir. Não tivemos que desembolsar um centavo sequer. O pedágio custara apenas R$ 2,40. Um serviço de qualidade! Agradecemos e recomeçamos a viagem pensado que tudo seria diferente dali para a frente.

A neblina estava um pouco acentuada durante a serra, mas tudo parecia andar bem. Parecia. De repente freiadas bruscas, carros fugindo pela contra mão e um risco eminente de engavetamento. O exímio motorista jogou o carro para esquerda e desviou-nos do perigo. Foi um susto inesperado, que voltou a nos atormentar mais duas vezes, e da mesma forma, durante o caminho. Ainda tenho minhas duvidas sobre o que realmente aconteceu, mas quero acreditar que o condutor não foi negligente em nenhuma delas. De qualquer forma, não estava nas condições ideais para analisar a situação com a profundidade necessária.

Após alguns contratempos, conseguimos chegar, inteiros, até o litoral. Estávamos agradecidos por ter superado todos os obstáculos. O sacrifício havia valido a pena e agora tínhamos quatro dias livres pela frente. Sossego, festas e diversão.  Mais um cigarro foi aceso antes de fugirmos para o descanso final.

No dia seguinte, assim que levantei, lembrei-me da noite anterior e fui até a varanda para analisar o clima. Estava otimista, mas obtive uma imensa decepção. O céu estava nublado, o tempo chuvoso e a temperatura abaixo dos dezessete graus. Não era nada do que estávamos esperando. Não mesmo. E assim continuou até o fim do feriado.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Asilo forçado



Eram quase 4h30 da manhã. O telefone tocou. Tentei ignorar, mas algum pressentimento desagradável me dizia que era necessário atender. Virei-me até o aparelho com uma tranquilidade incomum e tirei-o do gancho.

– Alô! ­– Disse com a garganta bastante arranhada.

– Boa noite, senhor! Meu nome é Fábio Cardoso, sou da Polícia Militar. Uma senhora, provavelmente sua avó, nos deu esse número e está aqui na Rua Aimberé, próxima ao 1900. Quebrou o pára-brisa de um carro estacionado e está completamente incontrolável. Ela está descalça, muito perturbada e fazendo um grande escândalo na vizinhança. Você precisa vir buscá-la agora!

Parei um segundo para analisar a situação. Dei um leve suspiro e respondi:

– Tudo bem. Já estou saindo daqui. Boa noite!

Levante-me bastante incomodado. Preocupado com o que poderia ter acontecido. Fatos anteriores já haviam me deixado bastante estressado, mas não havia muito que pudéssemos fazer, apenas aceitar e entender que não podíamos, por mais que tentássemos, culpar absolutamente ninguém.

Coloquei a típica calça jeans, calcei os tênis e saudei os cães enquanto colocava a camiseta. Cocei os olhos para espantar o sono e peguei a chave do carro. Sai de casa tentando organizar a infinita quantidade de dúvidas inexplicáveis que embaralhavam meus pensamentos.

Ela era e foi uma senhora sadia por muito, muito tempo. Sempre amou sua família e ajudou a todos da forma que podia. Era devota, inteligente, instruída e extremamente caridosa com as pessoas que estavam a sua volta. Possuía somente 1,60m, mas era um ser de alma e coração imensos. Fez o que esteve ao seu alcance para que todos ao seu lado se contentassem com o melhor. A avó que todos, pelo menos por um único dia, gostariam de ter. Claro que, já com oitenta anos, apresentava alguns problemas que a velhice carrega, mas nunca poderíamos esperar que as coisas terminassem assim.

Com o passar do tempo, medos incomuns começaram a dominar sua rotina. Dormir sozinha e ficar em seu próprio quarto por algumas horas passaram a ser tarefas inconcebíveis e duvidosas. Brigas e discussões por atitudes nada convencionais começaram a acontecer frequentemente. Era possível conviver com tais problemas, mas tudo, aos poucos, foi ficando cada vez pior. O receio de tudo a apavorava mais a cada dia. O fanatismo religioso já não supria suas fraquezas e sua sanidade começou a mostrar pistas de que algo não andava tão bem assim. Esquecia-se dos compromissos. Acontecimentos que não existiam passaram a ser tornar verdadeiros no seu cotidiano. As conversas ficaram mais fantasiosas e já não era possível encontrar algum sentido nas palavras e frases proferidas. O porque de tudo ainda era um grande mistério.

Quando as fugas do lar tornaram-se constantes, ficava difícil manter a traquilidade inabalável. Todos ficavam, pouco a pouco, cansados, com o humor alterado e as brigas eram cada vez mais comuns. Ela passou a esquecer o verdadeiro caráter das pessoas que mais amava e deixou que idéias falsas tomassem conta de seu interior. Seus netos tornaram-se, para ela, assassinos e viciados. Sua única família, agora, em sua frágil consciência, detestava-a e sua permanência no próprio lar ficou insuportável. Não porque era impossível viver em harmonia, mas porque ela não mais entendia o que realmente acontecia ao seu redor e não nutria nenhuma vontade de permanecer conosco.

As agressões aos que tentavam ajudar eram apenas mais um capítulo da saga que insistiam em piorar. O ponto crítico ocorreu quando trancou-se no quarto por horas intermináveis, evitando qualquer contato com  mundo exterior e negando- se a receber alguma forma de carinho. Sua transferência foi concluída assim que a porta foi arrombada, porém, finalmente, ela parecia estar mais calma e feliz.

Os sintomas pioram a cada dia e os tratamentos convencionais não conseguem amenizar o progresso da doença. É muito mais difícil conformar-se quando não temos opções. Os sentimentos de culpa e perda ainda não desapareceram. Talvez nunca acabem. Internar uma das pessoas que você mais ama em um asilo – ou casa de repouso para aqueles que buscam disfarçar a verdade –, longe dos olhos de quem apenas lhe quer bem, não é, e nunca será, uma tarefa fácil. Nós continuaremos sempre a lhe amar mesmo que você, um dia, acabe se esquecendo disso.